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Guerra bárbara contra os bravos



Lanço o desafio para que você, puxando da memória as aulas de história_ os livros podem ter ficado perdidos na lembrança já de anos_ tente recuperar o que foi dito sobre os povos indígenas do Brasil. Pouco, né? Quase nada. Mas, fique tranquilo. Isso diz menos sobre a sua capacidade de memorização do que sobre a que (e a quem) serve essa educação ocidental e etnocentrada a que somos submetidos no Brasil.

Um episódio nada pequeno, e talvez não tão desconhecido assim, mas, não obstante, desvalorizado, foi a resistência que povos indígenas do Nordeste brasileiro, entre eles guerreiros da grande nação Kariri, ofereceram à colonização_ que, em alguns livros, figura como tendo acontecido entre os séculos XVII e XVIII, embora todos nós saibamos que ela continua até hoje. Esse movimento de resistência aos colonizadores que insistiam em tomar para si o que era de outros, o sertão nordestino, é conhecido como Confederação Cariri, uma vez que vários povos se aliaram na defesa contra um inimigo comum: o ladrão branco. Esse conflito, assim como outras frentes de resistência indígena, foi apelidado pelo invasor, à época, de “Guerra dos Bárbaros”. Ainda que o termo “bárbaro” tenha caído em desuso na historiografia relevante, pesquisadores talentosos, como Antônio José de Oliveira, o reutilizam trocando seu sinal racista originário. Os bárbaros seriam assim, é claro, os invasores brancos. A guerra de libertação indígena recebe uma nova e mais justa denominação: “Guerra Bárbara contra os Tapuias” ou, ainda, “Bárbaras Guerras contra os bravos Tapuias”.

Com a derrota e a expulsão dos holandeses do interior do Nordeste, os portugueses se voltaram para essa região, ansiosos para explorar a terra, escravizar as gentes e aldear seus habitantes. Isso nós sabemos. O que com frequência nos omitem é o ostensivo processo de reação, revolta e resistência que eles encontraram. Enquanto os nativos queriam seu território ancestral para uso coletivo, os colonos o roubavam de forma institucionalizada por meio das sesmarias, terrenos concedidos pela Coroa portuguesa para novos colonos. Tais terrenos eram destinados à plantação de algodão e à criação de gado, sendo os responsáveis por estes últimos os maiores incomodados com a presença indígena naquelas terras. Citando John Hemming, Antônio José de Oliveira afirma que, já em 1680, “aqueles índios, quase todos da nação Kariri, combinaram e realizaram um levante contra criadores de gado a quem o rei havia concedido amplo direito de estabelecer criadouros em suas terras”. O sertão virou, assim, palco de uma guerra irrigada a muito sangue, indígena e europeu.

Como estamos falando de gibi e isso não uma aula de história, destaco apenas mais uma breve passagem sobre a resistência desses bravos povos indígenas à investida branca. Entre tantos anônimos, Oliveira recupera um nome em sua pesquisa, o indígena Kariri Manuel Vieira que, foragido do aldeamento, vivia na fronteira do território deixando rastro de assaltos e mortes e oferecendo perigo por, principalmente, incitar os demais indígenas aldeados à rebelião e à fuga, fato esse conhecido por meio de um documento em que o padre missionário pede ajuda às autoridades.

A representação sobre os povos originários oscila entre dois extremos_ que, novamente, dizem mais sobre quem os reproduz do que sobre os próprios povos indígenas. Com frequência, estes são mostrados como extremamente submissos, em escravidão voluntária (como a Iracema-virgem-dos-lábios-de-mel), sem voz, sem ação e passivos ao processo de colonização. O mito da pacificidade quer esconder a revolta e, com isso, apagar a violência sofrida. Na outra ponta, foi-lhes imposta a máscara do selvagem sanguinário, do bárbaro que precisa ser eliminado para dar lugar a uma suposta “civilização”, em um discurso que criminaliza o outro a fim de justificar a violência. Não se enganem: as duas argumentações, tanto a que parece ingênua quanto a mais declaradamente cretina visam ao extermínio dos donos da terra que se pretende usurpar.

De Kariri Manuel Vieira foi pedida a prisão por todos os “meios possíveis, ainda que fosse com difusão de sangue”. A barbárie e a bestialidade do colonizador são sempre institucionalizadas e amparadas por meios legais, o que lhes confere o status de justiça. Um exemplo disso são os dispositivos legais criados para legitimar o extermínio dos indígenas do sertão nordestino, conferindo às investidas brancas naquela região o caráter de uma guerra justa. Sabemos, contudo, que embora o extermínio tenha sido a intenção, a natureza indígena é resistir. Enquanto são vários os ataques sofridos pelos povos indígenas ao longo dos anos, como as tantas violências físicas e morais, o aldeamento, a depredação e as queimadas de seu território ancestral, o Brasil ainda é território indígena. Embora o Rafa Campos tenha feito uso de sua licença poética para fazer uma Kriança Índia sem gênero e sem etnia definida, sabemos que são mais de 300 povos indígenas que resistem no Brasil, desafiando ainda o colonizador que pretende expurgá-los para tomar a sua terra. Nas últimas eleições, quando se desenhava essa guinada conservadora que tomou conta do país e culminou no atual governo genocida, Ailton Krenak relembrou a tenacidade indígena: “Já passamos por tanta ofensa que mais essa agora não nos vai deixar fora do sério. Fico preocupado é se os brancos vão resistir. Nós estamos resistindo há 500 anos”.

A luta dos povos indígenas do Nordeste, que lutam na defesa dos seus territórios desde o século XVII, protegendo-os de quem quer apagar a memória ancestral para substituí-la por gado, é parte da luta de todos os povos indígenas do Brasil até hoje. Ouvir de um presidente que deveria se criar gado em terras indígenas, ainda e depois de tanto tempo, faz com que nos sintamos presos na Colônia, vivendo uma repetição de mau gosto, uma paródia patética. Seja o gado ruralista ou o gado político, mais uma vez o espaço ancestral é ameaçado pelo capitalismo_ e quem sofre com isso não são apenas os indígenas, mas todo o território. Cabe a nós seguirmos o modelo de todas as confederações-resistências do continente americano e combater a barbárie.

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